Em paralelo a taxas crescentes de desemprego, as crescentes inovações tecnológicas e a chegada da chamada Indústria 4.0 são pontos cruciais quando o assunto é transição de carreira. Apesar de contribuir para que algumas áreas de atuação percam vagas para a automação, elas criam novas frentes de trabalho, o que atrai jovens talentos e profissionais veteranos que desejam mudar de emprego e encontrar oportunidades em áreas mais aquecidas. Conhecer quais são essas demandas e as habilidades buscadas para estas novas profissões pode ser uma virada de chave importante para quem está em busca de uma colocação no mercado de trabalho.
Segundo o relatório “The Future of Jobs Report 2020” do Fórum Econômico Mundial, estima-se que, até 2025, 85 milhões de vagas serão perdidas diante da mudança do trabalho feito por humanos para o trabalho feito por máquinas. Mas, ao mesmo tempo, 97 milhões de novos empregos surgirão, mais adaptados à nova realidade tecnológica e exigindo profissionais preparados para ela.
Segundo o relatório, ocorrerá a “singularidade” do mercado de trabalho mundial: com o crescente uso de tecnologia e automação por empresas, as horas de trabalho desempenhadas por máquinas se equiparão às horas trabalhadas por seres humanos. O mesmo estudo aponta que, no Brasil, tecnologias de ponta já são amplamente empregadas pelas empresas: 97% utilizam computação em nuvem, 97% utilizam análise de Big Data e 94% adotam tecnologias de inteligência artificial, como machine learning e redes neurais.
Nesta reportagem, Ecoa mostra que é possível fazer uma transição de carreira mais suave e como a tecnologia pode ser usada como oportunidade mesmo diante de cenário de incerteza.
Se todas as empresas do país decidissem substituir trabalhadores humanos pela tecnologia já disponível, 54% dos empregos formais estariam em risco no Brasil diante das inovações tecnológicas e 30 milhões de vagas com carteira assinada poderiam ser fechadas até 2026. Isso é o mostra um estudo de 2019 do Laboratório de Aprendizado de Máquina em Finanças e Organizações da Universidade de Brasília (UnB). Entre as profissões em maior risco, estariam as de cobrador de transporte público, recepcionista de hotel, taquígrafo e torrador de café.
No Brasil, iniciativas voltadas para a formação de profissionais prontos para o futuro e para oferecer novas oportunidades de carreira em tecnologia têm focado em formar parcelas da força de trabalho que encontram mais portas fechadas.
Em São Paulo, a empreendedora Gabriela Augusto criou em 2017 a Transcendemos, empresa de consultoria em diversidade e inclusão. Ela oferece seminários e treinamentos para empresas que desejam se tornar mais inclusivas. Dentro do Transcendemos há a Comuto, programa de desenvolvimento profissional voltado para grupos minorizados (LGBTQIA+, negros e negras, mulheres, entre outros). Mulher trans, Gabriela Augusto passou por uma transição de carreira até criar sua empresa. Após se formar em direito na PUC-SP e estagiar em um escritório de advocacia, percebeu que não havia pessoas como ela nos espaços em que gostaria de trabalhar. Foi o ponto de partida para trilhar o caminho que leveria à Transcendemos.
Com a Comuto, já ofereceu cursos de marketing digital gratuitos em parceria com a agência Mutato e, em 2021, criou dez bolsas de estudo para pessoas trans e travestis em um curso de seis meses em programação, em parceria com a Oracle e a Alura. Também fechou parceria com o Facebook para oferecer vagas gratuitas a pessoas trans e travestis em cursos e workshops de formação em marketing digital.
“As empresas têm dificuldade de encontrar esses talentos. Não sabem onde buscar profissionais trans. E falam que, quando encontram, as pessoas não têm as habilidades necessárias. Então o que defendemos é que as empresas devem apoiar o desenvolvimento dessas pessoas. O mínimo é publicar uma vaga diversa e inclusiva. Para ir além, precisam promover ativamente essa diversidade com a formação desses profissionais”, analisa.
Também em São Paulo, Iana Chan fundou em 2015 a PrograMaria, negócio de impacto social focado no engajamento e formação de mulheres na tecnologia. No curso Eu ProgrAmo, mais de seis mil mulheres já passaram pelas aulas que abordam conceitos de HTML, CSS, Lógica Programação, JavaScript, além de dicas para trilhar carreira em tecnologia. O perfil das alunas que se formam no curso é composto por 37% mulheres negras, 18% mães e 33% mulheres LGBTQIA+. Em 2021, a PrograMaria fechou parceria com a Intel para financiar 400 bolsas no curso destinadas exclusivamente a pessoas trans e travestis.
Entre os profissionais que transicionaram para a área de tecnologia está Marcos Paulo Hoff, 35. Já na faculdade de publicidade na Universidade de São Paulo, Marcos Paulo começou a se interessar por trabalhos na área que conversavam com tecnologia. Na Easy Taxi, teve um primeiro contato direto com programação e se apaixonou. No fim de 2014, recém-formado na USP e decidido a mudar de carreira, ele estava prestes a começar um curso de análise de sistemas quando uma surpresa alterou todos os planos naquele momento: um derrame de causa não-definida e sem relação com comorbidades que o deixou catorze dias no hospital.
Ele ficou afásico e perdeu parte dos movimentos do corpo, mas se recuperou após sessões de fisioterapia e fonoaudiologia. Planos adiados, mas não esquecidos. Em 2017, começou a estudar análise de desenvolvimento de sistemas na Fatec-SP, onde se formou em 2021.
“Estou muito feliz na minha nova área. Não me arrependo de ter estudado publicidade antes e trabalhado com isso. O curso me deu conhecimentos importantes sobre marketing, pesquisa e design, coisas que me são úteis hoje. O maior desafio da mudança de carreira foi o de transicionar para uma nova realidade profissional sendo agora uma pessoa com deficiência (PCD)”, conta ele.
Na Fatec, ele desenvolveu um app baseado em sua experiência com o derrame. O aplicativo foi criado para ajudar pessoas com afasia a recuperar as funções linguísticas perdidas com exercícios no estilo do app de idiomas Duolingo. Ainda em fase de testes e aprimoramento, ele espera que o app possa ser disponibilizado para download e utilizado por pacientes em centros de reabilitação no futuro próximo.
A gerente da consultoria PageGroup Brasil, Julia Tomás, acredita que candidatos pertencentes a alguma minoria encontram mais barreiras para se inserir no mercado, ainda mais se estiverem no delicado processo de transição de área. Para isso, as empresas precisam parar de pensar em inclusão e diversidade apenas no processo de recrutamento.
A inclusão vai além do processo seletivo e para se tornar algo sustentável é necessário ter uma boa estruturação do plano de carreira para esses profissionais desde o momento em que eles chegam na empresa. Com entregáveis, metas claras e KPIs [Indicador-chave de desempenho], programa de mentoria e formação técnica. Precisam permitir que eles se adaptem à empresa e precisam dar espaço para que esse crescimento aconteça
Julia Tomás, gerente da consultoria PageGroup Brasil
Para quem está começando em uma nova área de atuação ou pretende iniciar uma transição, saber os conhecimentos técnicos exigidos é fundamental, mas é preciso lembrar que outras habilidades, mais difíceis de se mensurar e adquirir com um diploma, também são importantes. Tomás explica que as empresas cada vez mais avaliam o comportamento de seus colaboradores e não somente o conhecimento técnico. Essas competências, chamadas de “soft skills”, serão ainda mais exigidas no futuro, como inteligência emocional, liderança, adaptabilidade, e boa capacidade de comunicação e negociação.
“Por não ter a vivência técnica requerida na nova área, as empresas esperam que esse profissional tenha habilidades como fácil adaptabilidade, busca por aprimoramento constante e espírito empreendedor e autogerenciável. A empresa fornecerá as ferramentas para que ele possa se desenvolver, mas é responsabilidade do profissional querer e garantir esse aprimoramento”, explica Tomás.
Renata Pereira, consultora da consultoria de carreira Stato, psicóloga e entusiasta do LinkedIn, destaca que nenhuma habilidade é jogada fora e, mesmo em uma mudança drástica de área, o profissional deve levantar as habilidades que já tem e não só explicitá-las aos recrutadores como também usá-las no dia a dia da nova profissão. “Resiliência e persistência são habilidades fundamentais no processo de transição. Esse profissional vai encontrar muitos percalços pelo caminho, mas não pode perder a motivação”, analisa.
Ele reforça um ponto importante: caso tenha sido demitido e não possa ficar sem trabalhar, tente uma recolocação em sua área atual. A partir daí, trace o plano para a transição e comece a buscar cursos gratuitos ou a juntar dinheiro para pagar um novo curso no futuro.
Como planejar uma transição de carreira
Autoanálise - É fundamental. Olhe para a carreira que deseja começar e pense: eu tenho os atributos básicos para ser um profissional nessa área? Tenho paixão e interesse por essa área? Eu me identifico com o dia a dia dessa profissão?
Habilidades Faça um levantamento das suas habilidades técnicas e comportamentais e compare com as que são exigidas na nova carreira. A partir daí, veja quais você ainda não tem e quais você pode adquirir com cursos e estudos.
Planeje-se - Faça um planejamento financeiro para poder ficar sem trabalhar por um período. O processo de transição de carreira pode levar mais de um ano. Também é preciso ter reservas, já que o profissional que começa na nova área provavelmente não terá o mesmo salário da carreira anterior, caso já estivesse em uma posição mais elevada.
Estude - Seja com cursos grátis, seja com estudos mais longos e formais, é preciso adquirir as habilidades da nova profissão e mostrar para recrutadores da área que você está empenhado em trabalhar com aquilo e que você tem paixão e motivação.
Contatos - Desenvolver o networking é crucial. Entre em contato com pessoas que já trabalham na área. Tire dúvidas, peça conselhos de livros e cursos, peça para que contem como é o dia a dia prático da profissão. Isso não só deixará mais claro se a nova carreira combina com você como já criará uma nova rede de contatos.
Ciclo de Trabalho
Com desemprego recorde e profissionais sobrecarregados, o momento é delicado e pede ação rápida, criatividade, inovação e resiliência para tentar reverter os impactos da crise e ajudar a fomentar um futuro em que vida pessoal e vida profissional estejam em equilíbrio.
Nesta série, Ecoa se debruça justamente sobre pessoas, iniciativas e empresas que estão trilhando possibilidades deste amanhã viável. São reportagens especiais, entrevistas, guias práticos e muito mais conteúdo preparado para disseminar histórias e soluções e ajudar a incentivar um mercado mais justo, plural, produtivo e sustentável para todas as pessoas.
Direção de arte: René Cardillo; Edição geral: Fernanda Schimidt; Ilustrações: Vitor Vilela; Reportagem: Guilherme Dearo;
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