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O espelho corporativo, a urgência da liderança negra além do 20 de novembro 

  • Foto do escritor: STATO INTOO
    STATO INTOO
  • há 5 dias
  • 8 min de leitura

Uma análise baseada em dados sobre o "funil racial" na liderança sênior (Gerência, Diretoria e C-Level) e um chamado à ação estrutural para o mundo corporativo. 


O Dia da Consciência Negra e o Dever da Governança Corporativa 


O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é uma data que ultrapassa o simbolismo e a memória da resistência histórica de Zumbi dos Palmares. Para o ambiente corporativo, este dia não deve ser interpretado como uma obrigação de calendário para eventos pontuais, mas como um termômetro anual da responsabilidade social e um momento de auditoria sobre a justiça racial. As organizações que buscam relevância e sustentabilidade devem reconhecer que datas como esta exigem mais do que campanhas; elas exigem práticas contínuas, definição de metas de representatividade e transparência nos resultados.    

A celebração da data por si só, através de palestras, oficinas ou discussões abertas, embora útil para sensibilizar colaboradores, corre o risco de se tornar uma performance de inclusão. Quando o discurso público de apoio não é acompanhado por uma mudança mensurável na estrutura de poder da organização, cria-se uma perigosa ilusão de progresso, mascarando a inação estrutural.    

A verdadeira evolução no debate sobre equidade racial move a pauta do campo exclusivo do "Social" para o centro da "Governança". A promoção da diversidade e da inclusão é, hoje, um pilar central de "práticas de ASG (Ambiental, Social e Governança)" e de "Programas de Integridade". A falha em promover um ambiente onde negros e negras ascendam à liderança não é mais apenas uma deficiência de Recursos Humanos; é uma falha de governança.    

Iniciativas como o "Protocolo ESG Racial" sinalizam que investidores e a sociedade civil começam a tratar a questão racial "para o centro do debate econômico brasileiro". Portanto, a ausência de líderes negros e negras no topo das organizações é, e será cada vez mais, interpretada como um risco de governança, com impactos diretos na capacidade de inovação, na atração de novos talentos e na legitimidade da empresa perante a sociedade.    


O Retrato da Desigualdade: A Linha de Base e a Porta de Entrada 

Para diagnosticar a profundidade da exclusão no mundo corporativo, é imperativo estabelecer a linha de base demográfica do Brasil. De acordo com os dados do Censo 2022 do IBGE, a população negra (a soma de quem se autodeclara pardo ou preto) constitui 55,5% da população brasileira. Este é o primeiro Censo desde 1872 em que a população parda (45,3%) supera a branca, enquanto a população preta cresceu para 10,2%.    

Logicamente, em um sistema funcional, a representação corporativa refletiria essa realidade. Contudo, a distorção começa na própria base do emprego formal. Uma pesquisa de 2024 do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) sobre empresas de capital aberto revela que o quadro total de empregados é composto por 33,3% de pardos e 9,3% de pretos. O total de negros (42,6%) já apresenta um gap de 13 pontos percentuais em relação à população geral, antes mesmo de se discutir qualquer cargo de liderança.    

O paradoxo surge na porta de entrada para cargos de gestão: os programas de trainee e estágio. Dados recentes do Instituto Ethos, em seu "Perfil Social, Racial e de Gênero das 1.100 Maiores Empresas do Brasil" de 2024, indicam que a representatividade negra é altíssima nesses cargos de entrada: 70,8% dos trainees e 60,8% dos estagiários são negros.    

Este número, embora aparentemente positivo, é o sintoma de uma falha crônica de retenção e promoção. Ele invalida, primeiramente, o argumento histórico da "falta de talentos qualificados". O Censo 2022 demonstrou que o número de pessoas pretas e pardas com ensino superior cresceu cinco vezes entre 2000 e 2022. Os dados do Ethos provam que as empresas encontram e contratam esse talento qualificado em massa.    

Se o talento qualificado existe e é contratado (70,8% dos trainees), mas não se converte em liderança sênior (como demonstrado na próxima seção), o problema não está no talento ou no pipeline. O problema reside na estrutura interna das organizações. O investimento em programas de trainee, sem um investimento equivalente em programas de mentoria e promoção, cria uma "porta giratória" cara. As empresas investem para recrutar talentos negros que, ao se depararem com um "teto de vidro racial" , abandonam a organização, gerando frustração e desperdício de potencial.    


O Vácuo de Poder: A Análise Quantitativa de Gerentes, Diretores e CEOs 

É na análise da hierarquia de liderança que o "funil racial" se revela em sua forma mais brutal. Os dados respondem objetivamente à pergunta: "Onde estão os líderes negros e negras?"    


Nível Gerencial (O Primeiro Filtro) 

O primeiro grande filtro ocorre na transição de analista para gerente. Os dados do IBGC de 2024 mostram que, em "posições de liderança" (uma categoria que engloba a média gerência), a participação de pardos cai para 23,3% e a de pretos para 5,3%. O total de negros (28,6%) nesta faixa é uma redução drástica dos 42,6% vistos no quadro geral de funcionários. A percepção das próprias lideranças corrobora isso: 79,8% dos executivos ouvidos pelo Ethos acreditam que a proporção de negros na gerência está "abaixo do que deveria".    


Nível de Diretoria (A Liderança Sênior) 

Na transição para a liderança sênior, o filtro se torna quase impenetrável. Os dados mais recentes apresentam um cenário desolador, embora com números distintos que merecem análise: 


A Média do Mercado (IBGC): A pesquisa do IBGC de 2024, focada em empresas de capital aberto (com obrigações de reporte mais rígidas), revela uma exclusão quase total. Nas diretorias, há apenas 0,3% de pretos e 3,4% de pardos. O total de negros em cargos de diretoria é de 3,7%.    


O Teto da Classe (Ethos): A pesquisa do Ethos de 2024, baseada na participação voluntária das 1.100 maiores empresas (provavelmente enviesada para organizações que já possuem iniciativas de DEI), mostra um número de 13,8% de negros na diretoria.    

A aparente discrepância entre 3,7% (IBGC) e 13,8% (Ethos) não é uma contradição. Ela revela uma verdade mais profunda: a média do mercado de capitais brasileiro (IBGC) praticamente baniu pessoas negras da diretoria (3,7%). O "melhor da classe" (Ethos), ou seja, as empresas mais engajadas que respondem ao questionário, ainda operam com um déficit de mais de 40 pontos percentuais em relação à população geral (13,8% vs. 55,5%). 


Nível de Conselho e CEO (O Centro de Decisão) 

No topo da pirâmide, onde a estratégia é definida, a homogeneidade é a regra. O Ethos registra 5,9% de negros nos Conselhos de Administração. O IBGC é ainda mais rigoroso, detalhando que os órgãos de administração são compostos por 0,5% de pretos e 3,4% de pardos.    

A tabela abaixo consolida os dados de 2024, ilustrando o afunilamento desde a população geral até o topo da liderança corporativa. 

 

Tabela 1: O Funil da Representatividade Racial Corporativa (Dados 2024) 

Nível Hierárquico 

População (IBGE Censo 2022) 

Quadro Total (IBGC 2024) 

Posições de Liderança (IBGC 2024) 

Diretoria (IBGC 2024) 

Diretoria (Ethos 2024) 

Conselho de Administração (IBGC 2024) 

Conselho de Administração (Ethos 2024) 

Pardos 

45,3% 

33,3% 

23,3% 

3,4% 

N/A 

3,4% 

N/A 

Pretos 

10,2% 

9,3% 

5,3% 

0,3% 

N/A 

0,5% 

N/A 

Total Negros (Pretos+Pardos) 

55,5% 

42,6% 

28,6% 

3,7% 

13,8% 

3,9% 

5,9% 

Fonte(s) dos Dados 

 

 

 

 

 

 

 

   

O dado mais alarmante da pesquisa Ethos não é a baixa representatividade, mas a prova da inação consciente. O estudo revela que 86% das lideranças percebem que a representação negra no Quadro Executivo está "abaixo do que deveria". A consciência do problema existe no C-Level.    

No entanto, o mesmo relatório aponta que apenas 21,1% dessas empresas desenvolvem "alguma política ou ação afirmativa" para garantir a representatividade negra no nível executivo ou de diretoria.    

Este gap de 65 pontos percentuais entre a percepção do problema (86%) e a ação para resolvê-lo (21,1%) é a definição de racismo estrutural. O problema não é "viés inconsciente"; é uma escolha consciente de não agir. A liderança vê a exclusão, reconhece-a, e ativamente opta por não implementar as soluções (ações afirmativas) que alterariam a estrutura de poder. É a manutenção do "Pacto da Branquitude"  em plena luz do dia, validada por dados.    


O Teto de Concreto: A Dupla Penalidade da Mulher Negra na Liderança 

Se o funil racial é severo para homens negros, para mulheres negras ele funciona como um "teto de concreto". A análise interseccional  revela que elas enfrentam uma barreira dupla de raça e gênero, situando-as na posição mais vulnerável da estrutura corporativa, apesar de serem o maior grupo demográfico do país.    

Mulheres negras (pretas e pardas) compõem 28,5% da população brasileira e são o maior grupo em idade ativa. Contudo, no mundo corporativo, essa maioria demográfica é reduzida à invisibilidade.    

Em termos de liderança, os dados são alarmantes: 

  • Liderança Geral: Mulheres negras ocupam apenas 3% dos cargos de liderança nas empresas brasileiras, segundo levantamento da consultoria Gestão Kairós.    

  • Liderança Executiva: O quadro é ainda mais grave. Dados do Instituto Ethos (2016) indicavam que elas ocupavam apenas 0,4% dos quadros executivos nas 500 maiores empresas.    

A penalidade da interseccionalidade é mais evidente na análise salarial, que expõe a falha da narrativa meritocrática. O argumento de que a educação equaliza oportunidades é refutado pelos dados do Instituto Locomotiva, que comparam indivíduos com o mesmo nível de qualificação

  • A renda média de mulheres negras com ensino superior é de R$ 2.918.    

  • A renda média de homens brancos com o mesmo nível de graduação é de R$ 6.702.    

A mulher negra com diploma universitário recebe, em média, 43,5% do salário de um homem branco com exatamente a mesma qualificação. O mercado precifica o diploma de uma mulher negra como valendo menos da metade. Isso não é "teto de vidro"; é uma estrutura econômica de opressão. O termo "concreto" é mais preciso, pois a barreira não é sutil ou invisível; ela é óbvia, estrutural e mensurável em Reais.    

 

A Dupla Barreira: Indicadores de Mulheres Negras no Mundo Corporativo 

Indicador 

Mulher Negra 

Homem Branco 

Fonte(s) dos Dados 

Participação na População Total 

28,5% (Maior grupo) 

N/A 

 (IBGE) 

Participação na Liderança (Geral) 

3% 

N/A 

 (Gestão Kairós) 

Participação no Quadro Executivo 

0,4% 

N/A 

 (Ethos 2016) 

Renda Média (Com Ensino Superior) 

R$ 2.918 

R$ 6.702 

 (Inst. Locomotiva) 

   

Para Não Ter Mais Este Preconceito: O Caminho da Ação Antirracista 

O diagnóstico apresentado, fundamentado em dados de múltiplas fontes, é inequívoco. Este 20 de Novembro exige uma mensagem que supere a reflexão e impulsione a ação. Para que não tenhamos mais este tipo de preconceito estrutural, a estratégia corporativa deve mudar. 

O problema, como provado, não é a falta de talento negro qualificado. O problema, como provado, não é a falta de consciência da alta liderança.    

O problema é a inação deliberada  a preferência por eventos pontuais em vez de "práticas contínuas" , e o foco equivocado na contratação (input) sem a contrapartida de promoção (output).    

O caminho para uma mudança estrutural exige que as empresas parem de perguntar "Onde estão os talentos negros?" e comecem a perguntar "Onde estão os talentos negros que contratamos há 5 anos?". A solução é interna e deve ser pautada em três pilares: 


Governança e Integridade: A equidade racial deve ser tratada como um pilar de Governança e Integridade, não como filantropia. A adoção de protocolos como o "Protocolo ESG Racial” deve vincular a performance de diversidade dos executivos a bônus e avaliações, tratando a inação como uma falha de compliance.    


Foco na Promoção (Output): O investimento deve ser realocado. Menos foco em recrutar trainees (o que já se provou ser fácil) e mais foco em reter e promover o talento que já está na casa. Isso exige programas robustos de "aceleração de carreiras para pessoas pretas e pardas” e programas de "mentoria voltados para o desenvolvimento".    


Metas Públicas e Accountability: A mudança real só ocorre quando é medida. Apenas 21,1% das empresas têm ações para o nível executivo porque não há cobrança. As empresas precisam definir "metas de representatividade” e ter "transparência nos resultados". Iniciativas como a união de empresas para criar "10 mil cargos de liderança para pessoas negras” são o único caminho para quebrar a inércia e o "Pacto da Branquitude".    

No Dia da Consciência Negra, a mensagem final para o mundo corporativo é que o antirracismo não é apenas um imperativo moral; é uma estratégia de sobrevivência e inovação. Uma liderança corporativa (3,7% negra) que vive em uma bolha, radicalmente desconectada de sua base de talentos e de seu mercado consumidor (55,5% negro), é uma liderança ineficiente e fadada à irrelevância. Promover a justiça social não é o oposto do negócio; é o único caminho para a sua sustentabilidade.

 
 
 

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